Nos séculos VIII e IX, durante a grande controvérsia iconoclasta, uma questão dividiu o mundo cristão oriental. À parte se o uso de ícones no cristianismo violava ou não a proibição do Antigo Testamento sobre a confecção e o uso de esculturas (cf. Ex 20, 4), a pergunta era se Cristo poderia ser realmente retratado em uma imagem. Afinal, qualquer imagem real de Cristo deve apontar tanto para a Sua humanidade quanto para a Sua divindade. Como, porém, representar o infinito? Como descrever o indescritível? Alguns vão mais longe, a ponto de dizer que o próprio Cristo, sendo Deus, não teria possuído quaisquer características finitas. Jesus teria tido todas as cores possíveis de cabelo, todas as formas possíveis de nariz, todos os tamanhos possíveis de pés. O absurdo disso deveria ser evidente por si mesmo. Essa ideia é sintomática de uma doença muito antiga dentro do cristianismo: a negação – de alguma forma e em determinado grau – da verdadeira humanidade de Cristo. A Igreja gastou os seus primeiros séculos de existência trabalhando com o testemunho das Escrituras e da pregação apostólica, os quais deixaram claro que Jesus, ao mesmo tempo em que era humano – comendo, chorando, sofrendo e morrendo –, era Deus – afirmando ser um só com o Pai, chamando a Si mesmo de "Eu sou" (YHWH) e perdoando pecados. Reconciliar as duas realidades nem sempre foi fácil e a solução de muitos no meio do caminho foi tender ora para um lado, ora para outro – negando que Ele tivesse alma, vontade, inteligência ou aparência humanas. Faziam de tudo para evitar que se dissessem aquelas palavras aparentemente sem sentido: "Deus Se fez homem". Não se pode culpar todos os que pensam assim, necessariamente. Não se trata de uma dose fácil de digerir. Alguma coisa em nós parece recuar diante da ideia de que o Todo-Poderoso, o Onipresente, o Onisciente, o Sumo Bem, o único ente necessário, a causa de todas as coisas, possa ser limitado, contido e circunscrito em um bebezinho, em uma criança, em um homem – e não apenas em um homem, mas em um homem pobre, um carpinteiro rústico, nascido em um canto escondido do Império Romano, falando um idioma que poucos podiam compreender. Como pôde ser assim? Como pôde Deus assumir uma forma humana? Como pôde o Deus todo perfeito e autossuficiente sentir fome, crescer, aprender coisas e chorar? Parece haver algo de errado em tudo isso. Ainda assim, pode existir algo mais indigno do que ser publicamente envergonhado e executado como um criminoso, flagelado em praça pública e ser estendido nu no alto de um monte? Certamente não e, no entanto, não seríamos capazes de negar isso de Jesus, ou seríamos? Assim, se Ele pode sofrer e morrer, por que não pode rezar e comer, chorar e nascer? Há o outro lado de tudo isso, a visão que nega a divindade de Jesus e vê nele tão somente "um cara legal que nos ensinou algumas coisas boas, deu-nos um grande exemplo e mostrou o quanto nos amou recusando-se a agir violentamente contra os seus assassinos". Muitas vezes, a ideia de que "Jesus é o Todo-Poderoso Rei do Universo vestindo uma roupa humana por um curto período de tempo" pode não ser nada mais que uma reação ao Jesus "paz e amor", a outra extremidade do movimento do pêndulo. Mesmo assim, mais do que uma cristologia "fraca" ou "forte", o que precisamos é de uma cristologia verdadeira – ou, ainda melhor – uma cristologia fiel. Porque nós nunca compreenderemos completamente o mistério da Encarnação, mas podemos apreender um pouco dele, assim que começarmos a deixar que transforme as nossas vidas. É precisamente este o ponto: Jesus toma a nossa humanidade (toda ela) e a redime, elevando-a à perfeição, apertando o botão reset, por assim dizer. São Paulo diz em sua Carta aos Romanos que pelo pecado de Adão a humanidade se perdeu, mas pela obediência de Cristo, ela foi salva. "Como a falta de um só acarretou condenação para todos os seres humanos, assim a justiça de um só trouxe para todos a justificação que dá a vida" (Rm 5, 18). Isso é o que Santo Irineu de Lião chama a "recapitulação" de Cristo , o fato de Ele tornar-Se a cabeça da raça humana, por Sua obediência e sacrifício. Por isso, pela graça merecida por Sua Cruz e dada a nós nos Sacramentos, Ele permite que nos tornemos aquilo para o qual sempre fomos chamados: ser filhos de Deus. Em Jesus de Nazaré, Deus Se fez homem. Não deixe que essa verdade o assuste. Permita que ela transforme você. fonte: padrepauloricardo.org
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